





Carta a Don Ramón
Sandra Boto
Universidade do Algarve
Portugal
19-XI-2019
Afetuosíssimo amigo,
Apressei-me a responder ao seu contacto, como agora se diz, embora a surpresa de receber uma carta de V.ª Ex.ª me tivesse deixado paralisada. Não sei de que modo poderei ser útil a V.ª Ex.ª, mas desde já disponha como entender dos serviços desta já não tão jovem mas permanentemente precária investigadora. São assim os novos tempos.
Mas deixe V.ª Ex.ª que lhe dê os parabéns (felicitaciones) pelo seu 150º aniversário (cumpleaños)! Desejo-lhe muita saúde para que possa continuar a brindar-nos com a sabedoria a que nos tem habituado durante o último século e meio, embora já se deva ter apercebido Vª Ex.ª de que nos últimos anos têm surgido algumas vozes dissonantes que carregam (aportan) alguma neblina (niebla) sobre seu trabalho, apontando o dedo ao seu suposto enfoque nacionalista castelhano. Eu própria já redigi umas frouxas (flojas) linhas sobre o assunto. No caso de V.ª Ex.ª ter interesse em conhecê-las, terei todo o gosto em enviar-lhe o trabalho, que deverá fazer o favor de rebater conforme lhe aprouver.
Não tem preço o privilégio de me ser permitido trocar ideias com tão ilustre erudito, cerca (alrededor) de 100 anos volvidos sobre os episódios que marcaram a relação de V.ª Ex.ª com os insignes filólogos e nossos amigos comuns, a Sr.ª D.ª Carolina Michaëlis de Vasconcelos e o Sr. José Leite de Vasconcelos. Vai perdoar-me com certeza a comparação, mas sinto-me como que imersa nos versos daquela canção de Violeta Parra que foi celebrizada por Mercedes Sosa, “Volver a los diecisiete después de vivir un siglo” (não sei se V.ª Ex.ª a terá conhecido, entretanto, ou se, conhecendo-a, a apreciará). Creia-me que me sinto como se tivesse passado mais de um século desde que comecei a acompanhar o edifício de saber que V.ª Ex.ª construiu, mas sem nunca abandonar o estádio de imperícia que caracteriza a infância, quando ouso comparar-me com V.ª Ex.ª.
De qualquer modo, tinham razão a Sr.ª D.ª Carolina Michaëlis de Vasconcelos e o Sr. José Leite de Vasconcelos, nossos amigos comuns, quando demonstraram, entre finais do século XIX e inícios do século XX, que V.ª Ex.ª é dotado de uma capacidade de trabalho invulgar e constante. Agora percebo com clareza o porquê: a insuperável D.ª María, sua esposa, desempenhou (jugó), naquele tempo, um papel fulcral (indispensable). Acha V.ª Ex.ª que se lhe tem reconhecido o devido mérito? Eu estou em crer que não. A Sr.ª D.ª Carolina, senhora de finíssimo trato, confessou-me, embora um tanto na dúvida, que a senhora sua esposa era uma mulher de uma inteligência única, mas que o trabalho por ela desenvolvido (desarrollado) sempre foi reputado como uma mera colaboração para que o labor de V.ª Ex.ª pudesse brilhar qual estrela no céu de agosto. Por exemplo, a Sr.ª D.ª Carolina não entende o motivo pelo qual V.ª Ex.ª mediava as relações entre ambas. Muito menos apreciou (por ser senhora discretíssima nunca ousou confessar-lho) que o envio da nota sobre o feminismo em Espanha que a Sr.ª D.ª María Goyri fez o favor de preparar com tanto custo, numa época em que acabava de dar à luz, fosse frequentemente tratado com V.ª Ex.ª, através de quem lhe chegavam recados de sua esposa de teor profissional, naqueles tempos. Julgou ainda inacreditável que o Sr. Don Ramón lhe escrevesse que, se a Sr.ª D.ª Carolina não encontrasse valor no trabalho da senhora sua esposa, não lho devia publicar. Pensa ela, e eu concordo, que V.ª Ex.ª deveria antes incentivar a promoção (diseminación) da atividade da sua mulher, sabendo de antemão o valor irrepreensível de tudo o que saía da sua pena. De qualquer forma, este episódio deu a entender que V.ª Ex.ª não concebia como adequada a abordagem deste tipo de temas pela Sr.ª D.ª María Goyri. É pena, caríssimo amigo, é de lamentar. Mas os tempos mudaram, e disso já deve ter V.ª Ex.ª tomado consciência. Hoje, a sua esposa desfrutaria certamente de um lugar bem mais proeminente no olimpo dos eruditos espanhóis da primeira metade do século XX.
Advertiram-me ainda os nossos amigos comuns de que V.ª Ex.ª padece de sérias dificuldades com a Língua Portuguesa. Receio bem, a ser assim, que esta carta possa não ser entendida na sua totalidade. Por isso aceitei o que me pareceu ser um sábio conselho do Doutor Leite de Vasconcelos: traduzo aqui certos termos (términos) portugueses que se me afiguram de decifração mais estranha (rara) para V.ª Ex.ª, facilitando, deste modo, a nossa comunicação. Reportou-me o nosso Leite que foi assim que procedeu nalguma da correspondência que trocou consigo e que o método resultou extremamente eficaz. Segui, pois, o conselho dele. Com efeito, já a ilustre romanista alemã, a Sr.ª D. Carolina (cujo domínio impecável do Português não conhece disputa nem sequer entre os pais da língua) me confidenciara à puridade que V.ª Ex.ª lhe havia confessado um dia, há longos e longos anos, que não entendia português. Explicou-me então a nossa saudosa amiga que atribuía essa confidência a um excesso de humildade da parte de V.ª Ex.ª, mas também me relatou que as dúvidas etimológicas constantes que V.ª Ex.ª lhe reportava nas suas cartas, rogando-lhe ajuda, auguravam um real e preocupante desconhecimento da língua dos lusos, sobremaneira quando, tal como me contou o Sr. Leite de Vasconcelos uns tempos mais tarde, o seu projeto dialetológico tinha ambição peninsular. Fiquei, devo confessar, um pouco perturbada. Mas de modo algum pretendo (deseo) que se sinta V.ª Ex.ª afetado com esta dificuldade linguística, já que, no ano em que lhe escrevo, 2019, o Português terá inclusive perdido, por força do mal negociado Acordo Ortográfico, tantas marcas etimológicas, que se terá convertido numa língua plana, só de longínqua filiação latina. Se V.ª Ex.ª padecia de problemas com o meu idioma há 100 anos, nem quero imaginar como se sentirá atualmente. Estarei disponível para colaborar neste campo, auxiliando V.ª Ex.ª sempre que entender pertinente (conveniente).
Seja como for, apreciei saber que, em 1906, quando publicou V.ª Ex.ª aquela monografia sobre o Dialecto leonês, tentou convencer o Sr. Leite de Vasconcelos acerca da filiação leonesa do então tido como dialeto mirandês. Já deverá ter V.ª Ex.ª ouvido dizer que o Mirandês adquiriu, entretanto, o estatuto de língua oficial em Portugal, ao lado do Português. Mas voltando ao Sr. Leite, ele é difícil de convencer, como V.ª Ex.ª já deve ter percebido, embora nada que a persistência proverbial de Don Ramón não solucione quando o assunto é imperioso.
Já agora, e por falar em persistência, deixe-me que lhe transmita alguma tranquilidade a respeito do romanceiro português. Se me permite o reparo, não vejo necessidade de tamanho nervosismo na relação com o nosso Sr. Leite de Vasconcelos. Ficou suficientemente nítido que os interesses científicos dele iam noutro caminho, muito vocacionados para a etnografia. O próprio esclareceu, já nos anos 30, que as perspetivas de trabalho de V.ªs Ex.as eram muito diversas e que nada havia a conhecer sobre o romanceiro português que a erudição de V.ª Ex.ª não conhecesse já. Na minha modesta opinião, ele não estava a ser sincero. Mas já se vê que não estava minimamente disposto a colaborar no seu projeto, ancorado no método da geografia folclórica. Não se angustie V.ª Ex.ª, repito, pois na correspondência que lhe enviou, o seu método encontra-se extremamente bem descrito e a sua honestidade científica a respeito da indicação das fontes das versões também (hoje chamar-se-ia a essa forma de trabalhar “acesso aberto” ou “ciência aberta”). Era irremediável a pobre cooperação entre os dois neste campo, já se vê, pois a verdade é que o Sr. Leite encarava os materiais folclóricos como propriedade privada, nos antípodas, portanto, da forma de trabalhar visionária e tão atual de V.ª Ex.ª.
Ainda no que respeita ao romanceiro, tema cujo interesse nos enlaça, as grandes joias não surgiram na coleção do Sr. Leite de Vasconcelos. Pode ficar V.ª Ex.ª descansado a este respeito. Os raros temas épicos castelhanos detetados na tradição insular portuguesa, por exemplo, só seriam encontrados entre os anos 60-80 do século XX. E não tem V.ª Ex.ª razão para se preocupar relativamente ao acesso a estes materiais, nem quanto à sua utilização. Eles encontram-se hoje online, em livre acesso, exportáveis em diversos formatos e à inteira disposição de V.ª Ex.ª e da sua equipa para o que entenderem.
Como vê, a filologia sem barreiras é um compromisso inalienável para o nosso projeto Romanceiro.pt. Seguimos, portanto, as pisadas de V.ª Ex.ª, movidos pelo espírito de generosidade e solidariedade que sempre o caracterizaram. E esperamos não desiludir nem a obra nem, quando nenhum de nós perdurar já neste mundo, a memória de V.ª Ex.ª.
De V.ª Ex.ª, com toda a admiração,
Sandra Boto
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